domingo, 1 de julho de 2012

Tratado parcial da incoerência: o caso Lugo


Por Juremir Machado da Silva, em seu blog.


A reflexão é artigo de última necessidade. Só se usa quando não tem pizza.
O caso Lugo presta-se a todo tipo de reflexão. Parece que quase todas as posições são grades prévias aplicadas ao real. Grades são visões de mundo, paradigmas, lentes, infraestrutura mental, um modo de ver que se impõe a qualquer acontecimento.
Um carimbo que se gruda em cima dos fatos.
Fernando Lugo = esquerdista = não houve golpe.
Chávez = esquerdista = golpista.
Do ponto de vista estritamente formal, a chamada letra fria da Constituição, pode não ter havido, embora ninguém mostre literalmente o que diz a Constituição, preferindo-se aceitar uma interpretação radical como interpretação incontestável.
Não deixa de ser engraçado ver muitos dos mesmos que chamam Hugo Chávez de ditador e golpista, por ter feito mudar a Constituição para se manter no poder, afirmar que não houve golpe no Paraguai e que se trata de soberania nacional.
Chávez mudou a Constituição por plebiscito, o que é constitucional.
Os paraguaios poderiam convocar um plebiscito para definir a situação.
Não o farão. Estão satisfeitos com o golpe pós-moderno que deram, o golpe constitucional.
Se o presidente derrubado fosse de direita, muitos dos mesmos que estão afirmando não ter havido golpe, afirmariam o contrário e chamariam de farsa punir alguém sem lhe dar direito de defesa e sem precisar sequer tentar provar as acusações.
Leis são sempre passíveis de interpretação.
Para isso existem cortes constitucionais e juristas.
“Demitir” um presidente por “incompetência”, sem precisar provar em que consiste essa incompetência, é o paraíso das oposições. Certo, muito bem, dizem os satisfeitos com a saída de Lugo, mas existe o princípio da autodeterminação dos povos, está na Carta Magna paraguaia, etc., nada a contestar, nada de ingerência, fim de papo, bola para a frente, até mais.
Se o derrubado fosse de direita, repito, a cantilena seria outra.
A mídia destilaria veneno contra a falsificada constituição paraguaia, capaz de, em tese, validar a antítese da legalidade.
Os humoristas dos jornalões deitariam e rolariam.
Das duas, uma: ou não houve golpe no Paraguai nem Chávez é golpista, ou houve golpe nos dois.
Salvo se houve golpe no Paraguai e não na Venezuela.
Há quem prefera pensar o contrário, usando os mesmos argumentos.
A incoerência ao alcance de todos.
Aqueles que afirmam ser Chávez um golpista e não ter acontecido golpe no Paraguai não estão interessado em fatos. Apenas em ideologia. No pior sentido dessa palavra: encobrimento ou falseamento da realidade em nome de uma visão de mundo.
Na fase do Terror, na Revolução Francesa, podia-se guilhotinar qualquer pessoa que não fosse capaz de provar a sua inocência, sem precisar se provar as acusações contra ela. A isso se chama normalmente de regime ou situação de excecão.
Tudo sempre pode ficar mais complexo. Há quem tenha por regra algo simples: quem faz alterar a Constituição para permanecer no poder, dá golpe. Chávez seria golpista. FHC, que fez mudar a Constituição brasileira em prol da reeleição, o que o beneficiou, nesse caso, obviamente, deu golpe. Quem diria, Fernando Henrique golpista, um chavista intelectual.
Direitistas e esquerdistas praticam o mesmo ideologismo.
Tentam tapar o sol com a peneira.
Houve um escandaloso golpe real no Paraguai.
Chávez manipula o sistema legal na Venezuela.
FHC trapaceou com a regra no Brasil.
Bastaria que a mudança não o tivesse beneficiado e nada poderia ser dito sobre isso.
Por trás de tanta discussão, no caso Lugo, há uma verdade quase patética: quem diz que não houve golpe, aceitando o fim do direito de defesa e do ônus da prova ao acusador, está feliz com a queda de um presidente de esquerda, dito populista, cujo crime hediondo foi o de ter ficado do lado dos sem-terra de maneira um tanto atabalhoada.
Chega de jogo de cena: atos podem ser constitucionais e não ser democráticos. Podem ser legais e não ser legítimos. Podem ser formais, ou pseudoformais, e não ser morais. A expressão golpe constitucional não é piada. É humor de exceção.
O golpismo na América Latina tem muitas peles.
O golpismo constitucional é a pele de direita do golpismo plebiscitário da esquerda.
Os mesmos que justificam a decisão paraguaia com base num suposto apoio da maioria não falam de apoio da maioria quando se trata das vitórias de Chávez nas urnas. A grade funciona. O argumento precede o acontecimento.
Algum lacerdinha há de dizer que estou defendendo Chávez.
A incompreensão ao alcance de alguns.
Será Fernando Lugo ou novo Jango?
Um Jango piorado?

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