terça-feira, 5 de maio de 2009

Eduardo Galeano: a linguagem, as coisas e seus nomes


Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública. O capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado. O imperialismo se chama globalização. As vítimas do imperialismo se chamam países em via de desenvolvimento, que é como chamar de meninos aos anões. O oportunismo se chama pragmatismo. A traição se chama realismo. Os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos.
Por Eduardo Galeano
Na era vitoriana era proibido fazer menção às calças na presença de uma senhorita. Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:
O capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;
O imperialismo se chama globalização;
As vítimas do imperialismo se chamam países em via de desenvolvimento, que é como chamar de meninos aos anões;
O oportunismo se chama pragmatismo;
A traição se chama realismo;
Os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;
A expulsão dos meninos pobres do sistema educativo é conhecida pelo nome de deserção escolar;
O direito do patrão de despedir sem indenização nem explicação se chama flexibilização laboral;
A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;em lugar de ditadura militar, se diz processo.
As torturas são chamadas de constrangimentos ilegais ou também pressões físicas e psicológicas;
Quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, são cleoptomaníacos;
O saque dos fundos públicos pelos políticos corruptos atende ao nome de enriquecimento ilícito;
Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos motoristas de automóveis;
Em vez de cego, se diz deficiente visual;
Um negro é um homem de cor;
Onde se diz longa e penosa enfermidade, deve-se ler câncer ou AIDS;
Mal súbito significa infarto;
Nunca se diz morte, mas desaparecimento físico;
Tampouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares: os mortos em batalha são baixas e os civis, que nada têm a ver com o peixe e sempre pagam o pato, danos colaterais;
Em 1995, quando das explosões nucleares da França no Pacífico Sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: “Não gosto da palavra bomba. Não são bombas. São artefatos que explodem”;
Chama-se Conviver alguns dos bandos assassinos da Colômbia, que agem sob proteção militar;
Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade o maior presídio da ditadura uruguaia;
Chama-se Paz e Justiça o grupo militar que, em 1997, matou pelas costas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres e crianças, que rezavam numa igreja do povoado de Acteal, em Chiapas.
(Do livro De pernas pro ar, editora L&PM)
Texto publicado no site da Agência Carta Maior.

Nota do blogueiro:
Já não era sem tempo. Alguém haveria de se manifestar sobre o "estado das coisas", a forma como tudo está sendo distorcido, de forma sistemática, e reproduzido assim, diariamente.
Palavras e expressões que perdem totalmente seu significado, assumem outros, e os transformam em outras coisas.
Um exemplo disso vimos há quatro dias atrás, no 1º de Maio, dia DO TRABALHADOR, que os lacaios da patronagem insistem em chamar de dia do Trabalho. Não é a mesma coisa, não são nem mesmo coisas semelhantes. O primeiro termo, Dia do Trabalhador, enaltece o agente da produção, e seu histórico de lutas, vitórias e até mesmo de derrotas. O segundo termo dia do trabalho, seria uma forma de celebrar à produção, ao produto, à "coisa".
Essa conotação ganha força, em especial no Brasil, onde tenta-se apagar o significado do 1º de Maio, e nem mesmo nosos sindicatos fazem muito a respeito, em parte por causa do esvaziamento do verdadeiro debate político.
O mundo todo a protestar, contra o desemprego, contra a crise dos especuladores financeiros, contra a deterioração do trabalho e suas relações, contra as diversas tentativas de "flexibilização" das leis trabalhistas, os brasileiros comemoravam o "dia do trabalho" ao som de cantores sertanejos e padres ávidos por mídias.
Existe termo mais racista do que "Afro-Brasileiro"? Mataram o negro de vez. Não há motivos para aplicar cotas étnicas, porque não existe mais no Brasil a etnia oprimida pela escravidão, o NEGRO, agora é "Afro-Brasileiro";
Já que mencionei cotas, seguindo a linha de Galeano, a manutenção da desigualdade é definida por "Mérito";
Traficantes de sementes ilegais são chamados de empreendedores (assim como os neo-escravocratas, posseiros, grilheiros, os que destroem florestas para dar espaço à soja e ao pasto...);
Invasões armadas (e a guerra de conquista) são chamados ataques preventivos;
O uso do poderio bélico como forma de fortalecer interesses econômicos é "guerra ao terror";
Exploração do homem pelo homem é hoje "Livre iniciativa";
A manipulação de trabalhadores para a defesa de interesses patronais chama-se "Qualidade Total";
Protesto é baderna;
Movimentos sociais são organizações criminosas, por outro lado organizações criminosas são conjuntos de empreendedores, especialmente os que vestem camisas com "aquela cor de colarinho";
Um regime que prende, tortura, estupra, mata e esconde os corpos é uma "ditabranda";
Os maiores aliados desse regime hoje chamam-se "DEMOCRATAS";
Poderia passar a noite escrevendo sobre a temática levantada por esse brilhante escritor português, mas encerro o post, comentando uma das afirmações de Galeano: "O capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;" Na verdade, é um pouco pior do que isso. Não se discute o CAPITALISMO, nem mesmo seu eufemismo, economia de mercado, porque esa máquina de moer carne humana, é considerado o "mundo real", é o que existe, é difundido como algo além de qualquer alternativa.
Parece uma simples questão de nomeclaturas, de figuras de linguagem, mas é algo mais obscuro: A tentativa de reescrever a História, ao sabor dos interesses da classe que a escreve, apagando trechos, editando outros, renomeando para esconder, para iludir, para destruir, para calar.

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