quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Juremir Machado da Silva

Ainda sobre a privatização da Orla do Guaíba, reaizada ontem pela Câmara de Porto Alegre, transcrevo a coluna do sociólogo Juremir Machado da Silva, publicada hoje no jornal Correio do Povo:

VENDA DE DOAÇÕES

Por Juremir Machado da Silva

O grande pensador Jean-Jacques Rousseau era bom de frases. Um dia, saiu-se com esta: 'A gente sempre sabe o que se ganha com o progresso. O problema é saber o que se perde'. Tradução: cuidado com a sacanagem! A modernidade é uma serpente especialista em autopromoção. Essa imagem é de péssimo gosto. Assim como certas manobras para iludir a plebe. É costumeiro que, em nome do desenvolvimento e da criação de preciosos empregos, o Estado doe um terreno para que uma empresa privada se instale. Passam-se os anos e a dita empresa entrega os pontos. Aí surge um novo e sensacional projeto para a mesma área e, embora contrariando interesses coletivos, defende-se o livre uso do espaço em questão por ser uma propriedade privada. O ciclo é claro e recorrente: o público vira privado pelo bem comum. Depois, o bem comum deixa de ser atendido por ser considerado anacrônico colocar o interesse público acima do bem privado.

Recebi um número tão grande de e-mails sobre a questão do Pontal do Estaleiro que não pude sequer responder a cada remetente. A leitora Néia Uzon, porém, enviou-me uma informação que precisa ser compartilhada, ainda mais que ela fala 'na condição de quem já coordenou a área de patrimônio do município de Porto Alegre'. Os seus dados provam o funcionamento desse ciclo da serpente que privatiza pelo bem público: 'Toda a área da orla (da Ponta da Cadeia à Ponta do Melo e desta à Ponta do Dionísio) foi doada pelo Estado do RS ao município de Porto Alegre. Na época, corriam tratativas para a doação desta área à empresa Estaleiro Só S/A por parte do Estado, e a orla veio ao domínio do município com a condição de essa doação ter continuidade. A Procuradoria do município elaborou a minuta do projeto de lei autorizativa, bem como da escritura de doação ao Estaleiro Só S/A, com cláusula de reversão ao patrimônio público em caso de desvirtuamento das finalidades, doação ou falência da empresa. Sabe o que aconteceu?'.

Isto: 'Veio uma carta do então governador do Estado ao prefeito ordenando que a doação fosse feita sem qualquer cláusula de reversão (o que é de praxe, por motivos óbvios, em doações de áreas públicas) por ‘MOTIVOS DE SEGURANÇA NACIONAL’. Eram os anos de chumbo, prefeito nomeado, mandava quem podia e obedecia quem precisava... E agora? Qual é a desculpa do prefeito para não ter invocado vício de iniciativa? Se a moda pega, lá se vão os (poucos) limites que ainda mantêm um mínimo de moralidade na condução da questão urbana. Assim sendo, o município ou o Estado deveriam ter recomprado algo que era do povo desta cidade e que foi doado para ‘preservar a segurança nacional’, coisa que até hoje não consegui entender nem engolir. Em que a privatização de parte da orla ao Estaleiro afetava positivamente a segurança do país? A administração pública é um troço kafkiano. Agora só nos resta espernear. E vamos continuar esperneando até o fim porque até paciência de contribuinte (que parece não ter fim) tem limite! Obrigada pelos teus artigos!'. A proverbial falta de memória dos brasileiros quase sempre ajuda a enterrar detalhes que atrapalham a 'marcha inexorável do progresso'. Há sempre alguém, no entanto, para lembrar o que deveria ser esquecido pelo bem dos que adoram os bens públicos com tanto apego que os pegam para eles. Será que recordações desse gênero incômodo não influenciam os votos dos vereadores de Porto Alegre?
Nota do blogueiro: Em nenhuma outra parte do mundo, o Público e o Privado se misturam, de forma tão homogênea aos interesses das elites nacionais e estrangeiras. Será que algum dia poderemos realmente chamar o Brasil de República?

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